A proposta de uma etnografia urbana

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  • A mudança de foco que a perspetiva antropológica possibilita, principalmente em função do método etnográfico, tem a vantagem de evitar aquela dicotomia que opõe, no cenário das grandes metrópoles contemporâneas, o indivíduo e as megaestruturas urbanas.
  • Dicotomia que opõe, no cenário das grandes metrópoles contemporâneas, o indivíduo e as megaestruturas urbanas: Essa polarização pontua muitas análises e diagnósticos sobre a cidade contemporânea e pode ser identificada mais claramente nos conhecidos discursos do senso comum sobre despersonalização, massificação, solidão etc., motes muito difundidos e sempre à mão quando se quer discorrer sobre os problemas dos grandes centros urbanos.
  • Problemas dos grandes centros urbanos: No meio da multidão, o indivíduo está só. Ele cruza-se diariamente com centenas de pessoas que não conhece. Essas pessoas vivem no mesmo meio, mas não convivem. A mesma metrópole produz as massas e isola o indivíduo. Nesse contexto surgem, especialmente na literatura, temas que questionam a perda dos laços sociais tradicionais e apontam a banalização da vida nas grandes cidades.
  • Uma afirmação como essa, que evoca vagos "laços sociais tradicionais, mas que passa ao largo das possibilidades e das alternativas que a vida cosmopolita propicia, desconhece a existência de grupos, redes, sistemas de troca, pontos de encontro, instituições, arranjos, trajetos e muitas outras mediações por meio das quais aquela entidade abstrata do indivíduo participa efetivamente, no seu quotidiano, da cidade.
  • A simples estratégia de acompanhar um desses "indivíduos" nos seus trajetos habituais revelaria um mapa de deslocamentos pontuado por contactos significativos, em contextos tão variados como o do trabalho, do lazer, das práticas religiosas, associativas etc. É neste plano que entra a perspetiva de perto e de dentro, capaz de apreender os padrões de comportamento, não de indivíduos atomizados, mas dos múltiplos, variados e heterogêneos conjuntos de atores sociais cuja vida quotidiana transcorre na paisagem da cidade e depende de seus equipamentos.
  • Se a perspetiva que classifico de perto e de dentro está associada à etnografia, não é toda proposta de pesquisa com base na antropologia ou referida ao método etnográfico que busca esse tipo de conhecimento.
  • Um desafio para todos os que têm a cidade contemporânea como tema de estudo é, pois, o de construir modelos analíticos mais económicos que evitem o risco de se reproduzir, no plano de um discurso interpretativo, a fragmentação pela qual as grandes metrópoles são muitas vezes representadas na mídia, nas artes plásticas, na fotografia e em intervenções artísticas no espaço público.
  • Em todo caso, em vez de um olhar de passagem, cujo fio condutor são as escolhas e o trajeto do próprio pesquisador, o que se propõe é um olhar de perto e de dentro, mas a partir dos arranjos dos próprios atores sociais, ou seja, das formas por meio das quais eles se avêm para transitar pela cidade, usufruir seus serviços, utilizar seus equipamentos, estabelecer encontros e trocas nas mais diferentes esferas - religiosidade, trabalho, lazer, cultura, participação política ou associativa etc.
  • Esta estratégia supõe um investimento em ambos os polos da relação: de um lado, sobre os atores sociais, o grupo e a prática que estão sendo estudados e, de outro, a paisagem em que essa prática se desenvolve, entendida não como mero cenário, mas parte constitutiva do recorte de análise. É o que caracteriza o enfoque da antropologia urbana, diferenciando-o da abordagem de outras disciplinas e até mesmo de outras opções no interior da antropologia.