As ordens, as classes

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  • Em princípio, a sociedade do antigo regime só conhece as ordens. Portanto, só se pode falar de classes a seu respeito. Pelo contrário, a noção de ordem inscrita nos textos corresponde à mentalidade do tempo. É uma noção essencialmente jurídica. A ordem define-se por um estatuto. Daí que possamos falar indiferentemente de ordem ou de estado: o terceiro estado é a terceira ordem. Os dois termos são intermutáveis, sendo «estado» outra forma da palavra «estatuto».
  • A ordem define-se, efetivamente, por um estatuto que comporta ao mesmo tempo prerrogativas e obrigações, devendo umas e outras normalmente equilibrar-se. As obrigações encontram a sua contrapartida nas prerrogativase estas justificam-se pelo desempenho dos cargos que incumbem à ordem considerada.
  • Noção e realidade jurídicas são completamente estranhas à economia. Com as ordens, a fortuna, tal como a actividade profissional, não é um critério decisivo. Pessoas com níveis de vida muito diferentes podem perfeitamente pertencer à mesma ordem. Por exemplo, a burguesia mais rica coabita, no seio da mesma ordem - o terceiro estado ,- com os mendigos e os vagabundos. Juridicamente, a sua situação é a mesma: têm o mesmo estatuto. Como também dois homens pertencentes a duas ordens diferentes podem ter o mesmo nível de vida. Trata-se, pois, de uma realidade social irredutível à classe.
  • Pertence-se a uma ordem pelo nascimento no seio da nobreza ou do terceiro estado. Pode ascender-se por vocação no caso do clero, que propõe possibilidades de ascensão social aos plebeus: muitos conseguiram, fazendo carreira na Igreja, ascender aos mais altos cargos não só eclesiásticos, mas também políticos e administrativos.
  • Esta sociedade não se encontra fossilizada: as ordens não são castas; há possibilidades de enobrecimento. A aristocracia francesa, nas vésperas da revolução, é composta, numa proporção muito forte, por descendentes de famílias que, dois ou três séculos antes, não eram nobres, mas que obtiveram do rei cartas de enobrecimento ou usurparam um título de nobreza.
  • Discernimos a propósito do clero a origem longínqua da diferenciação em ordens: em certa medida, procede de uma divisão das tarefas e é por esse facto que apresenta algumas afinidades com a divisão em classes, pelo menos nos seus princípios. A divisão da sociedade do antigo regime em três ordens assenta originariamente numa diferenciação de funções. O clérigo tem como função rezar pela comunidade, prestar culto a Deus. A estas funções essenciais juntam-se outras ocasionais: o ensino, a assistência. O nobre assegura a defesa: combate, protege; acessoriamente, julga. O terceiro estado trabalha.
  • Esta repartição das funções que engendra uma distinção em ordens é, ela própria, reflexo de um sistema de valores. Alguns desses valores são religiosos, dada a preeminência do serviço de Deus sobre as outras atividades. Os outros são valores sociais; daí a distinção entre quem combate e quem trabalha e a preeminência concedida a quem usa a espada.
  • Se a ordem é uma noção jurídica, a classe não tem expressão jurídica. É uma simples realidade de facto, raramente consagrada pelo direito. Não o foi antes de 1789, não o é tão-pouco desde então: perante a lei, todos os indivíduos são iguais. Sendo a lei a mesma para todos, não tem em conta as classes, mesmo que, na realidade, a sociedade seja desigual a heterogénea.
  • As ordens não são iguais entre si; com a diversidade, esta sociedade comporta a desigualdade pela hierarquia. A primeira ordem é o clero, em seguida vem a nobreza e em último lugar o terceiro estado. A desigualdade não é então interpretada como uma excepção vergonhosa, uma derrogação da lei: é antes o estado normal. A sociedade do antigo regime assenta explicitamente na desigualdade: a desigualdade é tida por legítima, pois é a expressão da diferença das dignidades, das tarefas e das situações.
  • Cada ordem tem o seu estatuto próprio, e captamos neste ponto um traço característico do antigo regime político: não é uniforme. O antigo regime desconhece leis únicas. É uma das inovações da revolução de 1789 a instauração da igualdade perante a lei, da igualdade perante o imposto, da igualdade perante os encargos, e é nisso que a nossa sociedade contemporânea mais difere da sociedade do antigo regime.
  • O antigo regime parte do reconhecimento da diversidade das situações e consagra-a juridicamente. O antigo regime é o regime da lei particular. O antigo regime é o regime do privilégio. Para se penetrar no entendimento da sociedade do antigo regime, é necessário compreender os princípios em que ela assenta: diversidade da sociedade, pluralidade das ordens, hierarquia e multiplicidade das leis.
  • Estes privilégios comportam um sistema de direitos e de deveres que se equilibram. A nobreza tinha um dever: assegurar a defesa e a proteção. Em troca, estava dispensada de trabalhar e autorizada a lançar os direitos feudais. Por seu lado, o clero, para exercer o ofício divino, devia estar liberto de todo o trabalho servil e cabia aos fiéis assegurar o seu sustento.