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  • Em relação à descrição geral da monarquia absoluta, os regimes de despotismo esclarecido apresentam alguns traços distintivos que resultam em muitos casos das próprias circunstâncias, mas que bastam para lhes atribuir um lugar à parte na galeria dos regimes do século XVIII. Devem a sua originalidade ao facto de terem aparecido mais tarde do que as monarquias absolutas e por terem surgido noutros lugares.
  • A monarquia absoluta esboça-se desde o princípio dos tempos modernos. É em Espanha que, pela primeira vez, toma a sua fisionomia característica, no reinado de Filipe II, na segunda metade do século XVI; na mesma altura, Isabel não está longe de estabelecer um regime absoluto em Inglaterra. Em França é só no século XVI que a monarquia se torna absoluta. Assim, foi nos séculos XVI e XVII que se constituiu a monarquia absoluta.
  • O despotismo esclarecido data do século XVIII e até mais da segunda metade do século do que da primeira. Há, assim, entre o aparecimento da monarquia absoluta e a do despotismo esclarecido um desfasamento cronológico de pelo menos um século ou um século e meio.
  • A segunda diferença já não se refere à cronologia, mas à geografia. O lugar de eleição da monarquia absoluta é a Europa ocidental, com a França, a Espanha e a Inglaterra, o despotismo esclarecido localiza-se no Leste da Europa, com a Prússia, a Áustria e a Rússia. Encontramos a mesma dualidade das duas Europas, da ordem social, da presença ou ausência da burguesia, da predominância de uma sociedade urbana e da atividade comercial. Eis confirmada a nossa presunção das correlações entre atividade económica, organização das relações e forma dos regimes.
  • Esta dualidade (duas Europas), aliás, prolongar-se-á para lá do antigo regime. A revolução deixou traços mais duráveis no Ocidente da Europa do que no Leste. O significado histórico do despotismo esclarecido revela-se melhor a partir desta verificação. A sua função consistiu em permitir a estes países recuperar o atraso em relação à monarquia absoluta e empreender ou acelerar a sua modernização.
  • O facto de o despotismo esclarecido ter aparecido mais tarde e noutro lugar diferente do da monarquia absoluta teve consequências para a própria forma do regime.
  • ...ter aparecido mais tarde e noutro lugar diferente do da monarquia absoluta teve consequências para a própria forma do regime: Nascido mais tarde, o despotismo esclarecido sofre o contágio do espírito do século; é então, na sua apresentação, mais moderno do que a monarquia absoluta. Por convicção sincera e também por prudência e habilidade, os déspotas fazem concessões ao gosto e ao vocabulário da época; cuidando da sua propaganda por intermédio dos escritores e publicistas, lisonjeiam a opinião pública e conquistam as simpatias de uma Europa onde os filósofos começam a pontificar
  • Esta experiência de que os déspotas esclarecidos se aproveitam tem efeitos que chegam aos fundamentos do regime. De facto, se a monarquia absoluta mergulhava as suas raízes, por um lado, na noção romana de Estado e, por outro lado, numa teologia da monarquia de direito divino, o fundamento religioso tornou-se anacrónico e o despotismo esclarecido evita fazer-lhe alusão. É ao movimento das luzes que vai buscar a sua justificação. Legitima-se pelo desejo de fazer a felicidade do povo, pelas intenções filantrópicas então apregoadas.
  • O século XVIII é já um século laicizado, secularizado. Importa precisar que esta parte da Europa não é católica. A comparação entre monarquia absoluta e despotismo esclarecido mostra a evolução das relações entre política e religião.
  • A comparação entre monarquia absoluta e despotismo esclarecido mostra a evolução das relações entre política e religião: O despotismo esclarecido é uma versão secularizada da monarquia absoluta. É uma etapa no grande movimento que vai romper os laços entre a Igreja e os soberanos. Mesmo na Europa ocidental, o género de casamento místico que unia a coroa e a Igreja transformou-se num casamento de conveniência. Nos países onde o despotismo esclarecido reina, este estádio está mesmo ultrapassado e trata-se mais de uma aliança de interesses do que de uma simbiose de pensamentos e sentimentos.
  • O modernismo do despotismo esclarecido evidencia-se também pela sua racionalidade. O século XVIII é o século em que a razão empreende o exame crítico de todas as crenças. Se o despotismo esclarecido, na sua inspiração e nos seus fins, é racionalista, não o é menos nos objetivos que escolhe.
  • Visa instaurar uma ordem racional: a simplificação, a uniformização, a codificação, que caracterizam a sua atividade unem-se a esse grande desígnio de racionalidade em que o poder do Estado encontra significado. A simplificação elimina os rivais, a uniformização facilita a ação dos poderes públicos, reforça a sua autoridade. É por aí que o despotismo esclarecido pode aparentar-se a certos aspectos da obra da revolução. Os déspotas esclarecidos no Leste e a revolução no Ocidente atuaram no mesmo sentido de substituírem a tradição pela razão.
  • A localização no espaço tem como segunda consequência o facto de o despotismo esclarecido ter encontrado no Leste da Europa uma economia atrasada, uma falta de capitais, uma burguesia pouco numerosa ou mesmo inexistente, uma instrução ainda muito restrita, condições menos favoráveis do que as dos soberanos absolutos dos séculos XVI e XVII. O Estado vê-se assim obrigado a tudo fazer por si próprio e a substituir-se à iniciativa privada.
  • O despotismo esclarecido caracteriza-se então por práticas intervencionistas que fundam, se ela ainda não existia, uma tradição autoritária que se perpetuará até ao século XX.