Será uma sociedade burguesa?

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  • É um lugar-comum dizer que a sociedade nascida da revolução é uma sociedade burguesa.
  • A revolução é incontestavelmente burguesa pelos seus autores. A composição das assembleias mostra-o bem, pois a burguesia detém aí uma esmagadora maioria, os operários não estão representados e a aristocracia é expulsa. Aliás, não há nisso nada de anormal; a burguesia é a classe instruída, a mais capaz de empreender uma reforma desta natureza
  • Em segundo lugar, é ainda mais natural que esta burguesia pense nos próprios interesses e que estes coincidam com o espírito e o movimento da revolução. A igualdade civil e a liberdade favorecem essencialmente a burguesia, proprietária, industrial, comerciante. São geralmente os burgueses que adquirem os bens nacionais postos à venda, são os burgueses que povoam as administrações.
  • Em terceiro lugar, é um facto que, em pontos importantes, as assembleias revolucionárias ou o governo consular trouxeram restrições ao exercício das liberdades, à aplicação dos princípios de igualdade, em proveito da burguesia e em detrimento das outras classes.
  • Em terceiro lugar (2): Assim, as constituições de 1791 e de 1795 distinguem duas categorias de cidadãos, das quais só a que pode demonstrar condições de fortuna e de propriedade goza da plenitude dos direitos políticos. A noção do censo para diferenciar os cidadãos é uma derrogação grave dos princípios de liberdade e igualdade.
  • Em terceiro lugar (3): Quanto ao império, restaura uma nobreza, corpos, monopólios, e é nisto que se pensa quando se fala de revolução burguesa, feita pela burguesia para seu proveito exclusivo e desprezando os princípios de que se reclama. E em denunciar a contradição entre as ideias e a prática, a hipocrisia dos dirigentes.
  • Tudo isto é incontestável, mas exige ser revisto a uma luz mais justa, a não ser julgado em função da sociedade do século XXI, mas dos finais do século XVIII. O contraste entre os princípios e os comportamentos surge então menos pronunciado e, por assim dizer, menos escandaloso.
  • As distinções fundadas no dinheiro e na propriedade afiguram-se menos chocantes aos contemporâneos do que a nós. Nessa época conserva-se o critério da fortuna como o sinal do trabalho, do talento, do mérito, como uma presunção de que os eleitores que tenham uma maior independência terão disponibilidade para se informarem e poderão emitir opiniões mais fundamentadas. Não é o domínio brutal do dinheiro, é o dinheiro considerado num sistema de valores que põe a tónica na capacidade intelectual e na independência das opiniões.
  • Por outro lado, a contradição entre os princípios e a prática parece menos flagrante do que atualmente na medida em que os contemporâneos estabelecem a comparação, não com o resultado dos acontecimentos, mas com o que os precedera, e, feitas as contas, a nova sociedade, com as desigualdades que subsistem, parece-lhes infinitamente mais justa do que a anterior. Mostram-se sobretudo sensíveis à novidade revolucionária e ao carácter igualitário dessa ordem.
  • Finalmente, o liberalismo nos seus começos está ainda longe de ter desenvolvido todas as suas consequências. A igualdade enquanto princípio, a possibilidade de qualquer um fazer o que quer, são, num primeiro momento, sentidas e vividas bem mais como uma libertação do que como uma opressão.
  • Finalmente, o liberalismo nos seus começos está ainda longe de ter desenvolvido todas as suas consequências (2): Ainda ninguém teve tempo de as usar para subjugar outros à sua vontade de poder ou aos seus interesses próprios. E durante o século XIX que pouco a pouco se manifestam os inconvenientes do liberalismo e agravam as injustiças que ele transporta em embrião.