Cards (9)

  • A estes factores objetivos, isentos de toda a influência ideológica, acrescem os efeitos dos factores de mentalidade.
  • De facto, os dados de psicologia colectiva não tiveram menos importância no alargamento do papel do Estado do que os constrangimentos objetivos. Eles estão ligados a algumas das correntes de pensamento anteriormente evocadas. O reconhecimento progressivo das implicações e das aplicações do ideal igualitário da democracia, a aspiração à justiça que se exprime nas escolas socialistas e no cristianismo social, fizeram parecer anacrónica a noção liberal de não intervenção e de neutralidade do Estado.
  • Cada vez mais o bem-estar é considerado como um direito do indivíduo, um crédito em relação ao Estado, a quem se atribui a responsabilidade de o assegurar. Graças aos progressos da previsão, ao desenvolvimento da planificação, a ação dos poderes públicos deve introduzir mais racionalidade na atividade nacional e substituir a anarquia do laissez-faire por uma organização lógica e rendível.
  • Paixão pela igualdade, aspiração à justiça, desejo de racionalidade, vontade de grandeza, razão de Estado, tudo converge para investir o poder público de uma missão sempre mais imperiosa e mais vasta. É o fim da neutralidade e da abstenção do Estado. Desta evolução - melhor dizendo, desta inversão de tendência --, assinalámos os sintomas e as consequências: o aparelho administrativo tornou-se mais pesado e o orçamento cresceu.
  • Um dos efeitos mais significativos desta transferência de responsabilidade é a deslocação da fronteira entre o privado e o público, que tem a ver com uma socialização cada vez maior, um aumento de parte das atividades e dos equipamentos coletivos na vida das sociedades contemporâneas.
  • Numerosas atividades, que outrora dependiam exclusivamente da iniciativa privada, passaram, em parte ou no todo, para a dependência do poder público. Mas, contrariamente ao que poderia fazer crer uma apresentação necessariamente simplificada e fortemente sistematizada desta evolução, essa passagem não se efectuou segundo um traçado rectilíneo, nem tão-pouco se produziu sem debates e resistências.
  • Mais do que uma evolução linear no sentido de um aumento indefinido do papel do Estado, parece que um esquema alternativo dá melhor conta da realidade histórica na longa duração. Vimos o golpe certeiro desferido pela revolução liberal de 1889 nas intromissões do Estado. A progressão quase ininterrupta das suas prerrogativas desde o princípio do século XX parece hoje de novo ameaçada e questionada. O Estado não é amado.
  • O Estado não é amado: é naturalmente impopular, e, mesmo quando continua a pedir-se-lhe muito e a esperar que responda a toda a espécie de necessidades, respinga-se contra os constrangimentos que impõe, as incomodidades que acompanham a sua intervenção, os imbróglios da sua administração, o peso e a impessoalidade da sua tutela: a discordância entre as suas pretensões e os seus resultados, entre aquilo que dele se espera e o que ele oferece, alimenta as críticas e a nostalgia de um sistema onde o seu papel fosse reduzido.
  • No balanço que marca o ritmo das inclinações dos povos e das orientações ideológicas entre a esperança e a crítica da inciativa pública, entrámos, sem dúvida, numa fase de recuo. As ideologias e as utopias contemporâneas que têm a aceitação da opinião pública partilham quase todas de uma aspiração à emancipação das pequenas comunidades e ao definhamento do Estado. A crítica marxista do poder do Estado, que denuncia a sua monopolização pela classe dominante, e a aspiração das comunidades regionais a recuperarem personalidade e autonomia alimentam a hostilidade relativamente ao Estado.