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  • Depois de Karl Mannheim, cremos ter sido Daniel Vidal quem mais decididamente se empenhou na construção de uma teoria científica das ideologias, produzindo resultados que se revestem inequivocamente de fundamental importância e que, em parte, já puderam ser sujeitos a métodos de verificação empírica.
  • Recusando todo o percurso teórico de Mannheim, e portanto também a destrinça entre «ideologias» e «utopias», Vidal entende necessário «depurar toda a ideologia do seu conteúdo representativo, da sua função de pura ocultação ou mistificação, da sua interpretação em termos de décalage ou inadequação ao real, etc. A ideologia só pode tornar-se objecto sociológico», alegra, «após uma decisiva ruptura com tais evidências».
  • O empreendimento de Vidal é arrojado e difícil, e não seria lícito dizer que tenha logrado conformar com impecável clareza e rigor, inteira ausência de hesitações conceptuais e indiscutível comprovação, o seu próprio objecto científico.
  • Na verdade, o conceito de ideologia construído por Daniel Vidal não é meramente operatório e portanto captável através de uma definição que somente a ele, isoladamente, o configure e designe. É de facto um conceito sistémico, cuja correcta utilização pressupõe constante referência às suas interrelações com os restantes elementos conceptuais do sistema teorético a que pertence.
  • É, aliás, indispensável advertir que nada se poderá entender do que seguidamente se exporá a respeito da teoria das ideologias proposta por Vidal, se não se romper previamente com a noção vulgar que identifica as ideologias com as doutrinas (digamos: com as ideias político-sociais) de determinados autores, doutrinas que materialmente se objectivam nos seus livros, artigos, cartas e outros textos escritos ou orais.
  • As ideologias não têm autores individualmente designáveis, como os têm por exemplo as doutrinas objectivadas nas obras de Marx-Engels: são produtos culturais colectivos, que se formam nos grupos, nas classes sociais, nas sociedades e que aí se encontram difundidos, como formas (estruturas) comuns de pensamento e de leitura e valoração do real-social, sem que seja possível atribuir-lhes uma autoria.
  • Constituem-se na própria prática social, à semelhança do que sucede com as ideias do senso comum, que também não têm autor, porque resultam espontaneamente da prática quotidiana colectiva, tal como os indivíduos e os grupos a «vivem», a «experienciam». Por exemplo: a ideia do senso comum de que os corpos são intrinsecamente dotados de peso resultou espontaneamente do facto de, na sua prática quotidiana à superfície da Terra, os homens «experienciarem» os corpos como pesados.
  • Evidentemente, há obras com autor individualmente designável que são essencialmente ideológicas; mas, na medida em que são ideológicas, tais obras representam basicamente uma forma de expressão, através das ideias expostas pelos respectivos autores, de ideologias (ou de certos elementos de ideologias) que esses autores receberam de um determinado meio social.
  • Por outro lado, parece necessário reconhecer (isto não foi considerado por Vidal) que as ideologias absorvem frequentemente ideias construídas por certos autores, as quais, ao serem ideologicamente absorvidas, se desindividualizam, passando a figurar na ideologia como elementos da sua própria estrutura. De novo um paralelismo com o senso comum poderá ser esclarecedor: a ideia de que a Terra é redonda, assim como a de que o sangue circula no corpo humano, fazem hoje parte do senso comum, e, todavia, provêm de construções científicas cujos autores individuais são conhecidos e designáveis.