O olhar etnográfico: de perto e de dentro

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  • Tomando em conjunto esse debate em torno da questão urbana com as suas propostas e
    também críticas que vêm constituindo, desde há algum tempo, a pauta de inúmeros encontros de cúpula e seminários de organizações internacionais e também não governamentais, podem ser destacados alguns pontos em comum.
  • Podem ser destacados alguns pontos em comum: Em primeiro lugar, observa-se a ausência dos atores sociais. Tem-se a cidade como uma entidade separada dos seus moradores: pensada como resultado de forcas económicas transnacionais, das elites locais, de lobbies políticos, variáveis demográficas, interesse imobiliário e outros factores de ordem macro; parece um cenário desprovido de ações, atividades, pontos de encontro, redes de sociabilidade.
  • Podem destacar-se alguns pontos em comum: (Primeiro lugar, continuação) Quando muito, faz-se referência a alguma performance - arte pública - que parecia ser a única forma de intervenção capaz de alterar ou, ao menos, produzir algum momentâneo estremecimento, para deleite de uns poucos e indiferença da maioria que passa ao largo de tais experimentos.
  • A bem da verdade, não é propriamente a ausência de atores sociais que chama a atenção, mas a ausência de um certo tipo de ator social e o papel determinante de outros. Em algumas análises, a dinâmica da cidade é creditada de forma direta e imediata ao sistema capitalista; mudanças na paisagem urbana, propostas de intervenção (requalificação, reciclagem, restauração), alterações institucionais não passam de adaptações às fases do capitalismo que é erigido, na qualidade de variável independente, como a dimensão explicativa última e total.
  • Quando aparecem atores sociais, são os representantes do capital e das forças do mercado: financistas, agentes do setor imobiliário, investidores privados.
    Personagens como os "animadores culturais" - consultores, arquitetos, artistas e demais intelectuais - também se fazem presentes mas a serviço dos interesses do capital, como "profissionais caudatários".
  • Já os moradores propriamente ditos, que, nas suas múltiplas redes, formas de sociabilidade, estilos de vida, deslocamentos, conflitos etc., constituem o elemento que em definitivo dá vida à metrópole, não aparecem, e quando o fazem, é na qualidade da parte passiva (os excluídos, os espoliados) de todo o intrincado processo urbano. Nas leituras mais militantes, por certo, esses atores são recuperados, mas como sujeitos de estratégias políticas como o orçamento participativo, um "urbanismo socialmente includente", associações de vários tipos etc.
  • Sem ignorar a contribuição da ação engajada e organizada, no entanto, há uma gama de práticas que não são visíveis na chave de leitura da política (ao menos de uma certa visão de política): é justamente essa dimensão que a etnografia ajuda a resgatar. A incorporação desses atores e de suas práticas permitiria introduzir outros pontos de vista sobre a dinâmica da cidade, para além do olhar "competente" que decide o que é certo e o que é errado e para além da perspetiva e interesse do poder, que decide o que é conveniente e lucrativo.
  • Finalmente, não obstante terem as cidades globais como o referente para suas análises, alguns desses estudos tomam como pressuposto um tipo de cenário da vida pública ainda preso ao protótipo e a dimensões da cidade da alta Idade Média européia ou mesmo da cidade-estado antiga, cuja centralidade era simbolizada e garantida por algumas instituições que dominavam o espaço público.
  • (Sobre a tendência para a aldeia) Ora, num aglomerado contíguo com mais de dez milhões de habitantes, não há uma, mas várias centralidades e, em vez de se procurar (em vão) um princípio de ordem que garanta a dinâmica da cidade como um todo, mais acertado é tentar identificar essas diferentes centralidades e os múltiplos ordenamentos que nelas e a partir delas ocorrem.
  • Pois os atuais grandes centros urbanos não podem ser considerados simplesmente como cidades que cresceram demais - daí suas mazelas e distorções. A própria escala de uma megacidade impõe uma modificação na distribuição e na forma de seus espaços públicos, nas suas relações com o espaço privado, no papel dos espaços coletivos e nas diferentes maneiras por meio das quais os agentes (moradores, visitantes, trabalhadores, funcionários, setores organizados, segmentos excluídos, "desviantes" etc.) usam e se apropriam de cada uma dessas modalidades de relações espaciais.
  • Para além da nostalgia pela "velha rua moderna", certamente haveria que se perguntar se o exercício da cidadania, das práticas urbanas e dos rituais da vida pública não teriam, no contexto das grandes cidades contemporâneas, outros cenários: para tanto, é necessário procurá-los com uma estratégia adequada.
  • É o que se propõe com a antropologia, por meio do método etnográfico. As grandes cidades certamente são importantes para análise e reflexão, não apenas porque integram o chamado sistema mundial e são decisivas no fluxo globalizado e na destinação dos capitais, mas também porque concentram serviços, oferecem oportunidades de trabalho, produzem comportamentos, determinam estilos de vida - e não apenas aqueles compatíveis com o circuito dos usuários "solventes", do grande capital, frequentadores da rede hoteleira, de gastronomia e de lazer que seguem padrões internacionais.
  • A presença de migrantes, visitantes, moradores temporários e de minorias; de segmentos diferenciados com relação à orientação sexual, identificação étnica, preferências culturais e crenças; de grupos articulados em torno de opções políticas e estratégias de ação contestatórias ou propositivas e de segmentos marcados pela exclusão - toda essa diversidade leva a pensar não na fragmentação de um multiculturalismo atomizado, mas na possibilidade de sistemas de trocas de outra escala, com parceiros até então impensáveis, permitindo arranjos, iniciativas e experiências de diferentes matizes.
  • Não há como negar todos aqueles problemas apontados nos diagnósticos com base em inúmeros e consistentes estudos e comprovados também pela própria experiência do dia-a-dia nas grandes cidades, nem, evidentemente, as injunções dos interesses das grandes corporações transnacionais e das elites locais nos sistemas decisórios sobre o ordenamento urbano e sua influência nas condições de vida da população.
  • Não há como negar todos aqueles problemas apontados nos diagnósticos: Mas, isso é tudo? Este cenário degradado esgota o leque das experiências urbanas? Não seria possível chegar a outras conclusões, desvelar outros planos mudando este foco de análise, de longe e de fora, com base em outros métodos e instrumentos de pesquisa, como os da antropologia, por exemplo?
  • É bem verdade que esta disciplina, como se sabe, elaborou seus métodos de investigação a partir principalmente do estudo de sociedades dedicadas à coletores, à caça, à agricultura de subsistência e cujo modo de vida tem como base outras formas de assentamento que não a cidade; por conseguinte, as estratégias da pesquisa etnográfica, à primeira vista, não a credenciariam para deslindar as complexidades da cidade contemporânea, imersa no sistema globalizado.
  • Entretanto, é também consenso que a antropologia não se define por um objeto determinado: mais do que uma disciplina voltada para o estudo dos povos primitivos ela é, "a maneira de pensar quando o objeto é 'outro' e que exige nossa própria transformação. Assim, também viramos etnólogos de nossa própria sociedade, se tomarmos distância com relação a ela".
  • Essa questão da "distância" como condição para a análise antropológica, assim como outras - a relação sujeito/objeto, colocar-se ou não no lugar do outro, dar voz ao nativo, o caráter da participação na observação participante, a autoria do texto etnográfico - já rendeu muita discussão.
  • Questão do Ponto de Vista: Mas há um ponto que vale a pena identificar: trata-se da natureza, da especificidade do conhecimento proporcionado pelo modo de operar da etnografia e que - de acordo com a hipótese que está sendo trabalhada - permite-lhe captar determinados aspetos da dinâmica urbana que passariam desapercebidos, se enquadrados exclusivamente pelo enfoque das visões macro e dos grandes números.
  • Núcleos de significado recorrentes: o primeiro deles é uma atitude de estranhamento e/ou exterioridade por parte do pesquisador em relação ao objeto, a qual provém da influência de sua cultura de origem e dos esquemas conceituais de que está armado e que não é descartada pelo facto de estar em contacto com outra cultura e outras explicações, as chamadas "teorias nativas". Na verdade, essa co-presença, a atenção em ambas é que acaba provocando a ambiguidade, a possibilidade de uma solução não prevista, um olhar descentrado, uma saída inesperada.
  • Núcleos de significado recorrentes: Por outro lado, essa experiência tem efeitos no pesquisador: ela o "afeta", "transforma", produz-se "nele" e, no limite, "converte". O pesquisador não apenas apreende o significado do arranjo do nativo, mas ao perceber esse significado e conseguir descrevê-lo agora nos seus termos (dele, analista), é capaz de atestar sua lógica e incorporá-la de acordo com os padrões de seu próprio aparato intelectual e até mesmo de seu sistema de valores.
  • Núcleos de significado recorrentes: Trata-se de construir um sistema de referência onde possam encontrar lugar o ponto de vista do indígena, o do civilizado e os erros de um sobre o outro, construir uma experiência alargada que se torne, em princípio, acessível para homens de um outro país e de um outro tempo.
  • Ambos, pesquisador e nativo, participam de um mesmo plano: o dos "fenómenos fundamentais da vida do espírito". Ambos são dotados dos mesmos processos cognitivos que lhes permitem, numa instância mais profunda, uma comunhão para além das diferenças culturais. Afinal, "as milhares de sociedades que existem ou existiram sobre a superficie da terra são humanas e por esse título participamos delas de maneira subjetiva: poderíamos ter feito parte delas e portanto podemos tentar compreendê-las como se fôssemos parte delas"
  • Cabe assinalar que o método etnográfico não se confunde nem se reduz a uma técnica; pode usar ou servir-se de várias, conforme as circunstâncias de cada pesquisa; ele é antes um modo de acercamento e apreensão do que um conjunto de procedimentos. Ademais, não é a obsessão pelos detalhes que caracteriza a etnografia, mas a atenção que se lhes dá: em algum momento, os fragmentos podem arranjar-se num todo que oferece a pista para um novo entendimento.
  • Em suma: a natureza da explicação pela via etnográfica tem como base um insight que permite reorganizar dados fragmentários, informações dispersas, indícios soltos, num novo arranjo que não é mais o arranjo nativo (mas que parte dele, leva-o em conta, foi suscitado por ele) nem aquele com o qual o pesquisador iniciou a pesquisa. Este novo tem as marcas de ambos: mais geral do que a explicação nativa, presa às particularidades do seu contexto, pode ser aplicado a outras ocorrências; mas, é mais denso que o esquema teórico inicial do pesquisador, pois tem agora como referente o "concreto vivido"
  • Em suma: Assim, o que se propõe inicialmente com o método etnográfico sobre a cidade e sua dinâmica é resgatar um olhar de perto e de dentro capaz de identificar, descrever e refletir sobre aspetos excluídos da perspetiva daqueles enfoques que, para efeito de contraste, qualifiquei como de fora e de longe.