O pressuposto da totalidade

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  • Qual seria, na estratégia proposta (olhar perto e dentro), a unidade de análise? A cidade em seu conjunto ou cada prática cultural em particular? Ou, nos termos de uma dicotomia mais conhecida, trata-se de antropologia da cidade ou na cidade?
  • Para introduzir essa questão, convém retomar um ponto comum às abordagens até aqui apresentadas: a maioria dos estudos que classifico como olhar de fora e de longe dá pouca relevância àqueles atores sociais responsáveis pelo enredo que sustenta a dinâmica urbana; quando aparecem, são vistos através do prisma da fragmentação, individualizados e atomizados no cenário impessoal da metrópole.
  • Contrariamente às visões que privilegiam, na análise da cidade, as forças económicas, a lógica do mercado, as decisões dos investidores e planeadores, proponho partir daqueles atores sociais não como elementos isolados, dispersos e submetidos a uma inevitável massificação, mas que, por meio do uso vernacular da cidade (do espaço, dos equipamentos, das instituições) em esferas do trabalho, religiosidade, lazer, cultura, estratégias de sobrevivência, são os responsáveis por sua dinâmica quotidiana.
  • Postulo partir dos atores sociais em seus múltiplos, diferentes e criativos arranjos coletivos: seu comportamento, na paisagem da cidade, não é errático mas apresenta padrões.
  • Partir das regularidades, dos padrões e não das "dissonâncias", "desencontros", como condição da pesquisa supõe uma contrapartida no plano teórico: a ideia de totalidade como pressuposto.
  • Não se trata, evidentemente, daquela totalidade que evoca um todo orgânico, funcional, sem conflitos; tampouco se trata de uma totalidade que coincide, no caso da cidade, com os seus limites político-administrativos. Renunciar a esse tipo de totalidade não significa embarcar no extremo oposto um mergulho na fragmentação. Se não se pode delimitar uma única ordem, isso não significa que não há nenhuma; há ordenamentos particularizados, setorizados; há ordenamentos, regularidades.
  • Uma primeira representação de totalidade, como pressuposto da etnografia, é aquela fornecida pela clássica visão de uma comunidade em que os membros se conhecem, mantém relações face-a-face, estão ligados por padrões de troca interpessoais etc.
  • Mas se um recorte bem estabelecido é condição para o bom exercício da etnografia, a exigência de totalidade vai além dessa necessidade de se poder contar com o objeto da pesquisa no interior de limites demarcados. Uma incursão pela etnologia indígena pode esclarecer: se uma delimitação espacial concreta - a aldeia, o acampamento, uma porção definida do território, a jusante ou a montante de tal ou qual rio - é imprescindível para fundar a observação etnográfica, outros recortes, contudo, mais amplos, são mobilizados para situar, avaliar, comparar o detalhe das etnografias.
  • Assim, referências como "paisagem amazônica", "terras baixas sul-americanas" e outras, presentes nos textos de etnologia indigena, permitem determinar recorrências e padrões de troca e comunicação mais amplos nos planos da cosmologia, do xamanismo, da mitologia, dos rituais etc.: sem essa passagem corre-se o risco de ficar preso aos estreitos limites de um estudo de caso. A questão da totalidade coloca-se, dessa maneira, em múltiplos planos e escalas.
  • Uma segunda característica da totalidade como pressuposto da etnografia diz respeito à dupla face que apresenta: de um lado, a forma como é vivida pelos atores sociais e, de outro, como é percebida e descrita pelo investigador.
  • Segunda característica da totalidade: Lévi-Strauss mostra de que maneira elementos de natureza muito diferente podem chegar a se articular num facto social, e que só sob esta forma podem ter uma significação global, transformando-se numa totalidade, o autor afirma que a garantia de que tal facto "corresponda à realidade e não seja uma simples acumulação arbitrária de detalhes mais ou menos certos" é que seja conhecido no interior de uma experiência concreta, desde um plano mais social, localizada no tempo e no espaço, até o plano do indivíduo.
  • Para ficar no campo da antropologia urbana, quem já estudou grupos de jovens, claques organizadas de futebol etc. sabe muito bem que nestes e em outros casos análogos há uma totalidade vivamente experienciada tanto como recorte de fronteira quanto como código de pertença pelos integrantes do grupo. É também evidente, por parte de seus integrantes, uma perceção imediata, clara, sem nuances ou ambiguidades a respeito de quem é ou não é do pedaço: é uma experiência concreta e compartilhada.
  • É também evidente, por parte de seus integrantes, uma perceção imediata, clara, sem nuances ou ambiguidades a respeito de quem é ou não é do pedaço: é uma experiência concreta e compartilhada. O analista, por sua vez, também percebe tal experiência e a descreve: essa modalidade particular de encontro, troca e sociabilidade supõe a presença de elementos mínimos estruturantes que a tornam reconhecível em outros contextos.
  • Uma totalidade consistente em termos da etnografia é aquela que experienciada e reconhecida pelos atores sociais, é identificada pelo investigador, podendo ser descrita nos seus aspetos categoriais: para os primeiros, é o contexto da experiência, para o segundo, chave de inteligibilidade e princípio explicativo. Posto que não se pode contar com uma totalidade dada a priori, postula-se uma a ser construída a partir da experiência dos atores e com a ajuda de hipóteses de trabalho e escolhas teóricas, como condição para que se possa dizer algo mais que generalidades a respeito do objeto de estudo
  • Portanto, aqueles dois planos a que se fez alusão anteriormente - o da cidade em seu conjunto e o de cada prática cultural assinada a este ou àquele grupo de atores em particular - devem ser considerados como dois polos de uma relação que circunscrevem, determinam e possibilitam a dinâmica que se está a estudar.
  • Para captar essa dinâmica é preciso situar o foco nem tão de perto que se confunda com a perspetiva particularista de cada utilizador e nem tão de longe a ponto de distinguir um recorte abrangente, mas indecifrável e desprovido de sentido.
  • Em outros termos, tanto no nível das grandes estruturas físicas, económicas, institucionais, etc., como ao nível das escolhas pessoais, há planos intermediários onde se pode distinguir a presença de padrões, de regularidades. E para identificar essas regularidades e poder construir, como referência, algum tipo de totalidade no interior da qual seu significado possa ser apreciado, é preciso contar com alguns instrumentos, algumas categorias de análise.