A família de categorias

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  • Essas totalidades são identificadas e descritas por categorias que apresentam, um duplo estatuto: surgem a partir do reconhecimento de sua presença empírica, na forma de arranjos concretos e efetivos por parte dos atores sociais, e podem também ser descritas num plano mais abstrato. Neste caso, constituem uma espécie de modelo, capaz de ser aplicado a contextos distintos daquele em que foram inicialmente identificados.
  • Essas totalidades são identificadas e descritas por categorias que apresentam, um duplo estatuto (2): São, portanto, resultado do próprio trabalho etnográfico, que reconhece os arranjos nativos mas que os descreve e trabalha num plano mais geral, identificando seus termos e articulando-os em sistemas de relações. A noção de pedaço, por exemplo, supõe uma referência espacial, a presença regular de seus membros e um código de reconhecimento e comunicação entre eles.
  • Pedaço, aliás, é a primeira de uma série de categorias que terminaram conformando uma "família" terminológica - pedaço, trajeto, mancha, pórtico, circuito.
  • Quando o espaço - ou um segmento dele - assim demarcado torna-se ponto de referência para distinguir determinado grupo de frequentadores como pertencentes a uma rede de relações, recebia o nome de "pedaço": O termo na realidade designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade
  • Uma primeira análise mostrou que essa noção de pedaço era formada por dois elementos básicos: um de ordem espacial, física - configurando um território claramente demarcado ou constituído por certos equipamentos - e outro social, na forma de uma rede de relações que se estendia sobre esse território.
  • As características desses equipamentos definidores de fronteiras (bares, campo de futebol etc.) mostravam que o território assim delimitado constituía um lugar de passagem e encontro. Entretanto, não bastava passar por esse lugar ou mesmo frequenta-lo com alguma regularidade para ser do pedaço; era preciso estar situado (e ser reconhecido como tal) numa peculiar rede de relações que combina laços de parentesco, vizinhança, procedência, vínculos definidos por participação em atividades comunitárias e desportivas etc.
  • Assim, era o segundo elemento - a rede de relações - que instaurava um código capaz de separar, ordenar e classificar: era, em última análise, por referência a esse código que se podia dizer quem era e quem não era "do pedaço" e em que grau ("colega", "chegado").
  • O pedaço apontava para domínio intermediário entre a rua e a casa: enquanto esta última é o lugar da família, à qual têm acesso os parentes e a rua é dos estranhos (onde, em momentos de tensão e ambiguidade, recorre-se à fórmula "você sabe com quem está falando?" para delimitar posições e marcar direitos), o pedaço é o lugar dos colegas, dos chegados. Aqui não é preciso nenhuma interpelação: todos sabem quem são, de onde vêm, do que gostam e o que se pode ou não fazer.
  • O componente espacial do pedaço, ainda que inserido num equipamento ou espaço de mais amplo acesso, não comporta ambiguidades desde que esteja impregnado pelo aspeto simbólico que lhe empresta a forma de apropriação característica.
  • Gangues, bandos, turmas...exibem - nas roupas, no discurso, na postura corporal, nas preferências musicais - o pedaço a que pertencem. Neste caso, já não se trata de espaço marcado pela moradia, pela vizinhança, mas o "efeito pedaço" continua: venham de onde vierem, o que buscam é um ponto de aglutinação para a construção e o fortalecimento de laços.
  • Existe uma forma de apropriação quando se trata de lugares que funcionam como ponto de referência para um número mais diversificado de frequentadores. Sua base física é mais ampla, permitindo a circulação de gente oriunda de várias procedências e sem o estabelecimento de laços mais estreitos entre eles. São as manchas, áreas contíguas do espaço urbano dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam - cada qual com sua especificidade, competindo ou complementando - uma atividade ou prática predominante.
  • Numa mancha de lazer, os equipamentos podem ser bares, restaurantes, cinemas, teatros, o café da esquina etc., os quais, seja por competição seja por complementação, concorrem para o mesmo efeito: constituir pontos de referência para a prática de determinadas atividades. Já uma mancha caracterizada por atividades ligadas à saúde, por exemplo, geralmente se constitui em torno de uma instituição do tipo âncora - um hospital -, agrupando os mais variados serviços (farmácias, clínicas particulares, serviços radiológicos, laboratórios etc.), e assim por diante.
  • As marcas dessas duas formas de apropriação e uso do espaço - pedaço e mancha - na paisagem mais ampla da cidade são diferentes. No primeiro caso, em que o fator determinante é constituído pelas relações estabelecidas entre seus membros (como resultado do manejo de símbolos e códigos), o espaço como ponto de referência é restrito, interessando mais a seus acostumes. Com facilidade muda-se de ponto, quando então se leva junto o pedaços.
  • A mancha, ao contrário, sempre aglutinada em torno de um ou mais estabelecimentos, apresenta uma implantação mais estável tanto na paisagem como no imaginário. As atividades que oferece e as práticas que propicia são o resultado de uma multiplicidade de relações entre seus equipamentos, edificações e vias de acesso, o que garante uma maior continuidade, transformando-a, assim, em ponto de referência físico, visível e público para um número mais amplo de usuários.
  • Diferentemente do que ocorre no pedaço, para onde o indivíduo se dirige em busca dos iguais, que compartilham os mesmos códigos, a mancha cede lugar para cruzamentos não previstos, para encontros até certo ponto inesperados, para combinatórias mais variadas. Numa determinada mancha sabe-se que tipo de pessoas ou serviços se vai encontrar, mas não quais, e é esta a expetativa que funciona como motivação para seus frequentadores.
  • A cidade, contudo, não é um aglomerado de pontos, pedaços ou manchas excludentes: as pessoas circulam entre eles, fazem suas escolhas entre as várias alternativas - este ou aquele, este e aquele e depois aquele outro - de acordo com uma determinada lógica. Mesmo quando se dirigem a seu pedaço habitual, no interior de determinada mancha, seguem caminhos que não são aleatórios. Está-se a falar de trajetos.
  • O termo trajeto surgiu da necessidade de se categorizar uma forma de uso do espaço que se diferencia, em primeiro lugar, daquele descrito pela categoria pedaço. Enquanto esta última, como foi visto, remete a um território que funciona como ponto de referência - e, no caso da vida no bairro, evoca a permanência de laços de família, vizinhança, origem e outros -, trajeto aplica-se a fluxos recorrentes no espaço mais abrangente da cidade e no interior das manchas urbanas.
  • O trajeto é a extensão e, principalmente, a diversidade do espaço urbano para além do bairro que colocam a necessidade de deslocamentos por regiões distantes e não contíguas: esta é uma primeira aplicação da categoria: na paisagem mais ampla e diversificada da cidade, trajetos ligam equipamentos, pontos, manchas, complementares ou alternativos.
  • Outra aplicação de trajeto é no interior das manchas. Tendo em vista que elas supõem uma presença mais concentrada de equipamentos, cada qual concorrendo, à sua maneira, para a atividade que lhe dá a marca característica, os trajetos, nelas percorridos, são de curta extensão, na escala do andar: representam escolhas ou recortes no interior daquela mancha, entendida como uma área contígua.
  • A ideia de trajeto permite pensar tanto uma possibilidade de escolhas no interior das manchas como a abertura dessas manchas e pedaços em direção a outros pontos no espaço urbano e, por consequência, a outras lógicas. Sem essa abertura corre-se o risco de cair numa perspetiva reificadora, restrita e demasiadamente "comunitária" da idéia de pedaço - com seus códigos de reconhecimento, laços de reciprocidade, relações face-a-face.
  • Afirmou-se que pedaço é aquele espaço intermediário entre a casa (o privado) e o público ou, para utilizar um sistema de oposições já consagrado, entre casa e rua. Não é, contudo, um espaço fechado e impermeável a uma e outra, ao contrário. É a noção de trajeto que abre o pedaço para fora, para o âmbito do público.
  • Os trajetos levam de um ponto a outro por meio dos pórticos. Trata-se de espaços, marcos e vazios na paisagem urbana que configuram passagens. Lugares que já não pertencem à mancha de cá, mas ainda não se situam na de lá; escapam aos sistemas de classificação de uma e outra e, como tal, apresentam a "maldição dos vazios fronteiriços". Terra de ninguém, lugar do perigo, preferido por figuras liminares e para a realização de rituais mágicos - muitas vezes lugares sombrios que é preciso cruzar rapidamente, sem olhar para os lados...
  • Há, por fim, a noção de circuito. Trata-se de uma categoria que descreve o exercício de uma prática ou a oferta de determinado serviço por meio de estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantêm entre si uma relação de contiguidade espacial, sendo reconhecido em seu conjunto pelos usuários habituais: por exemplo, o circuito gay, o circuito dos cinemas de arte, o circuito neo-esotérico, dos salões de dança e shows black, do povo-de-santo, dos antiquários, dos clubbers e tantos outros.
  • Ainda que pedaço e mancha tenham em comum uma referência espacial bem delimitada, a relação do pedaço com o espaço é mais transitória, pois pode mudar-se de um ponto a outro sem se dissolver, já que seu outro componente constitutivo é o simbólico, em razão da forte presença de um código comum. Já a mancha - delineada pelos equipamentos que se complementam ou competem entre si no oferecimento de determinado bem ou serviço - apresenta uma relação mais estável com o espaço e é mais visível na paisagem: é reconhecida e frequentada por um círculo mais amplo de usuários.
  • A noção de circuito também designa um uso do espaço e de equipamentos urbanos possibilitando, por conseguinte, o exercício da sociabilidade por meio de encontros, comunicação, manejo de códigos -, porém de forma mais independente com relação ao espaço, sem se ater à contiguidade, como ocorre na mancha ou no pedaço. Mas tem, igualmente, existência objetiva e observável: pode ser levantado, descrito e localizado.
  • Em princípio, faz parte do circuito a totalidade dos equipamentos que concorrem para a oferta de tal ou qual bem ou serviço, ou para o exercício de determinada prática, mas alguns acabam por ser reconhecidos como ponto de referência e de sustentação à atividade.
  • Mais do que um conjunto fechado, o circuito pode ser considerado um princípio de classificação. Nesse sentido, é possível distinguir um circuito principal que engloba outros, mais específicos: o circuito dos acupunturistas ou o dos astrólogos, por exemplo, fazem parte do circuito principal neo-esotérico e com ele mantém contatos, vínculos e trocas.
  • Por outro lado, o circuito comporta vários níveis de abrangência e a delimitação de seu contorno depende das perguntas colocadas pelo pesquisador.
  • Este é um procedimento que permite encarar o problema do "caos semiológico", aquela impressão que se tem cada vez que se isola um determinado indivíduo confrontando-o diretamente com a cidade; nessas condições, é inevitável a sensação de anonimato, fragmentação, desordem. Essa impressão é o efeito de um olhar de longe e de fora; ajustando-se devidamente o foco da análise, contudo, é possível perceber os diferentes circuitos que o usuário reconhece e percorre ao estabelecer seus próprios trajetos, seja nos planos profissional, do lazer, do consumo e participação e muitos outros.